"A agressão à Guiana parece uma moeda de troca para que os EUA reconheçam as eleições de 2024".

Agência Brasil/EBC
Em meio à escalada da ditadura de Nicolás Maduro em uma nação tomada por escombros socioeconômicos e humanitários, 12 países uniram forças para estabelecer o Grupo de Lima - organização idealizada em 2017 para resistir ao avanço autoritário bolivariano e manter o que restava de democracia na Venezuela.
Dois anos mais tarde, após “vencer as eleições” mais uma vez, Nicolás Maduro foi surpreendido pela iniciativa de Brasil e Estados Unidos de lutar com todas as forças para resgatar a dignidade da Venezuela. Com isso, testemunhamos um novo capítulo da história mundial, com o não reconhecimento internacional de Maduro como presidente da república.
Grande parte desse esforço foi conquistado graças ao trabalho diplomático do entrevistado pelo Rumo Econômico: o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
Apesar de distante fisicamente do Brasil, o diplomata nunca abandonou seu patriotismo nem o olhar analítico sobre as crises que tumultuam o planeta. Entre elas, a da tentativa autoritária do velho conhecido, Nicolás Maduro, de dominar a pequena Guiana.
Em nossa extensa conversa, Ernesto Araújo apenas comprovou o status de ser um dos maiores experts em geopolítica de nossos tempos.
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Rumo Econômico - Os acontecimentos ligados ao referendo e o anúncio promovido por Maduro da anexação da Guiana estão acontecendo de forma frenética. A Venezuela alega que tem direito ao território de Essequibo em virtude do rompimento de um acordo feito em 1966. Quem tem razão nessa disputa?
Ernesto Araújo - O referendo realizado não significa nada em termos de direito internacional. Significaria, se fosse um referendo na Guiana, perguntando se as pessoas querem passar a ser parte da Venezuela. Mas um referendo num país perguntando se a sua população concorda em anexar território de outro país não tem valor algum. Chega a ser ridículo. Entretanto, serve para a imagem de Maduro, de que está agindo pela "vontade do povo venezuelano" e não por intenção própria, o que é obviamente falso.
Ao mesmo tempo, é preciso esclarecer algo sobre a pretensão venezuelana ao território da Guiana na margem esquerda do Essequibo - pretensão que foi na verdade reapresentada em 1966. A Venezuela tem antiga pretensão àquele território, mas estava acomodada às fronteiras existentes desde o final do Século XIX. Enquanto, do outro lado da fronteira estava o poderoso Império Britânico, ao qual pertencia a Guiana - ou o Reino Unido do pós-Segunda Guerra, que ainda era um país relativamente forte.
Em 1966 a Guiana se tornou independente. Nesse momento, do ponto de vista venezuelano, do outro lado da fronteira passou a estar não mais o Reino Unido com sua grande armada e uma das cinco ou seis maiores economias do mundo, mas sim a República Cooperativa da Guiana - um país frágil, pobre, recém-criado, com poucos recursos materiais e diplomáticos. Naquele momento, a Venezuela resolveu reabrir a reivindicação. Portanto, a atual escalada de agressão de Maduro se baseia em uma iniciativa pouco louvável da Venezuela bem anterior ao Chavismo.
Rumo Econômico - Mesmo com sua confirmada “aprovação”, o referendo contou com baixa adesão popular, assim como as demais recentes eleições. O sr. acredita que essa manobra política possa ser, de fato, uma espécie de justificativa para Maduro cancelar as eleições de 2024 e se perpetuar no poder?
Ernesto Araújo - Não me parece que seja exatamente isso. Maduro quer realizar eleições em 2024, mas eleições do jeito dele: manipulando listas eleitorais, intimidando eleitores, excluindo os candidatos mais fortes da oposição, principalmente María Corina Machado, a maior líder democrática da Venezuela e imensamente popular. Numa eleição assim manipulada, Maduro certamente ganhará e permanecerá no poder com aura de legitimidade. Tudo o que ele quer é vencer uma eleição reconhecida pela comunidade internacional.
Por ora, se Maduro é considerado por tantos países um ditador, isso é porque, em 4 de janeiro de 2019, sob a liderança do Brasil e por minha própria iniciativa, o Grupo de Lima decidiu não reconhecer a legitimidade das eleições anteriores, vencidas por Nicolás Maduro em 2019.
Isso foi a base da ação diplomática internacional contra a ditadura de Maduro. Se ele promover uma eleição em 2024 e for reconhecido vencedor, terá sua barra limpa. Isso tem mais valor para ele do que simplesmente cancelar a eleição e continuar no poder.

Maduro e BIden - arte
Rumo Econômico - E qual seria, então, o real contexto por trás da tentativa de tomar o território da Guiana?
Ernesto Araújo - Penso que a agressão à Guiana constitui uma moeda de troca: Maduro pode moderar essa agressão, em troca de uma promessa dos EUA e outros países democráticos de reconhecerem o resultado de uma eleição presidencial em 2024 feita nos moldes que ele próprio determine.
Rumo Econômico - A Guiana passou a crescer de forma sustentável - e célere - a partir de sua parceria com a norte-americana ExxonMobil iniciada em 2015 para a exploração de petróleo. Mesmo já sendo um dos maiores produtores do mundo, a mobilização de Maduro indica querer mais essa fatia de riquezas de Essequibo. São duas as questões aqui. Por compartilhar interesses com a Guiana, os EUA não seriam diretamente afetados com a intenção de Maduro? Já a Venezuela, com falta de recursos para a industrialização do petróleo, conseguiria dar conta do ônus da conquista?
Ernesto Araújo - O petróleo da Guiana não me parece ser elemento central da disputa. O objetivo é colocar a Guiana na órbita de influência da Venezuela, o que eles podem conseguir sem invasão, apenas mantendo a tensão sobre a Guiana. Além disso, há o elemento de barganha que acabei de mencionar. Em todo caso, se a Venezuela tomar os poços de petróleo da Guiana, eles irão provavelmente para a China e não para a PDVSA, que hoje não tem condições de operar nem os seus próprios poços.
Além disso, não acho que os EUA movam uma palha em defesa das companhias petrolíferas americanas. Os EUA de Biden já deram todos os sinais de que querem o mínimo de problema possível com a Venezuela ou na América do Sul como um todo. Inclusive, porque boa parte do Partido Democrata é simpática a Maduro e ao Foro de São Paulo.
Rumo Econômico - Lula já demonstrou que deve facilitar a vida de Maduro, caso necessite passar por nossa fronteira em Roraima. Essa mobilização do Exército Brasileiro para reforçar a defesa de Pacaraima não aparenta ser apenas para “mostrar serviço” para a opinião pública nacional e internacional?
Ernesto Araújo - Provavelmente é isso mesmo. Lula não tem qualquer intenção de fazer nada a favor da Guiana contra a agressão venezuelana. Além disso, muito se fala que as forças da Venezuela teriam que passar pelo território brasileiro para invadir a Guiana, mas não é bem assim.
Se houver uma invasão, provavelmente será uma invasão anfíbia, pelo litoral da Guiana, no norte, bem distante da região próxima a Pacaraima. É no litoral da Guiana, no norte, que estão os poços de petróleo, a capital Georgetown e os principais recursos do país. A região sul da Guiana, perto de Pacaraima, não tem praticamente nenhum valor estratégico militar, não há razão para que a Venezuela invada por ali.
Rumo Econômico - Olhando para o passado recente - e tendo como base os casos de Ucrânia e Israel, o Brasil certamente deve atuar como “falso neutro”, correto?
Ernesto Araújo - A tendência é de que o Brasil simplesmente peça "paz" o que, na prática - assim como no caso da Ucrânia -, significará dar ao país agressor o poder de redesenhar as fronteiras.
Rumo Econômico - Supondo que ocorra, de fato, uma disputa militar entre Venezuela e EUA, Maduro teria alguma chance? Até o momento, não há grandes esforços para evitar que a Venezuela concretize seu plano de ampliar seu território.
Ernesto Araujo - Dependeria muito das condições do conflito. Claro, se os EUA realmente mobilizassem forças significativas, eles derrotariam a Venezuela. Entretanto, isso poderia ter um custo extremamente alto, pois a Venezuela tem forças armadas muito consideráveis - e com muito armamento e assistência russa e iraniana.
De toda forma, vejo baixíssima possibilidade de um envolvimento militar dos EUA nesse caso, pela atitude de complacência do governo Biden frente à Venezuela e todos os demais regimes anarco-socialistas latino-americanos.
Rumo Econômico - Como o sr. vê o papel da ONU como suposta mediadora?
Ernesto Araújo - Quanto à ONU, vi notícias de que a Guiana quer levar o caso ao Conselho de Segurança. Isso será importante para que a Comunidade Internacional preste mais atenção ao conflito. Porém, a possibilidade de vermos alguma ação efetiva do Conselho de Segurança é zero, uma vez que Rússia e China vetariam qualquer decisão contrária a Maduro.
Rumo Econômico - Nesta quarta-feira (6), Nicolás Maduro tentou mais uma vez demonstrar sua força, exibindo um mapa atualizado da Venezuela, já com Essequibo em posse do país bolivariano. Isso não parece algo ousado, até mesmo para ditadores como ele, ou já há uma espécie de suporte garantido por China e Rússia, em caso de reação do ocidente?
"A tendência é de que o Brasil simplesmente peça "paz" o que, na prática - assim como no caso da Ucrânia -, significará dar ao país agressor o poder de redesenhar as fronteiras".

Maduro e Xi Jinping - Agência Brasil/EBC
Ernesto Araújo - Provavelmente tem tudo acertado. Maduro faz parte de um eixo que, cada vez mais, só se move de maneira coordenada: China-Rússia-Irã-Venezuela. Todos esses países estão abrindo frentes que exigem a atenção dos EUA.
Temos a Rússia na Ucrânia, o Irã em Israel através do Hamas e Hezbollah, a China em Taiwan e agora a Venezuela na Guiana. Obviamente, isso não é por acaso. Deve existir um plano de dispersar ao máximo as forças dos EUA em vários teatros de operação.
Rumo Econômico - Vamos colocar o seguinte cenário. Há realmente a possibilidade de o Brasil atuar na guerra e ainda convocar reservistas para dar guarida a Maduro ou isso se trata de pura especulação?
Ernesto Araújo - Não acredito. O que prevejo é uma participação de diplomatas brasileiros, agindo para facilitar a anexação da Guiana Essequibo pela Venezuela e para legitimar Maduro no poder.
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